Dois de Fevereiro

É hoje. Mal tinha acordado e sabia que era hoje o dia. Há muito tempo não acordava tão consciente. Há muito tempo sonhava e me iludia.

É hoje. O dia mal raiou. Preciso de um banho. Preciso molhar as plantas. Preciso comer. 

Será que vou ter coragem? Como posso jogar tudo para o alto, assim, do nada? Tudo parece normal. Na minha normalidade já não sabia a diferença do bom e do ruim. O normal já não me serve há tanto tempo, me dói continuar nesse normal.

Ele acordou. Ficou feliz com a minha disposição num domingo. Ele não conseguia ver a tristeza por trás dos olhos, do peito, das armaduras que lustrei e reforcei por tanto tempo. O metal que me protegia de mim mesma e me fazia estar nesse normal.

Comemos. Como sempre, pouco falamos. Ele foi para o sofá, entretido com o mundo de fora. Eu continuei na mesa. Olhando para todas as migalhas que aceitei naquela década. Olhando para os pedaços de mim que deixei para trás e não sabia se um dia se encaixariam de volta em mim. Fiquei esperando que algo me desse o sinal que precisava. Mesmo depois de muito pensar, esperava um sinal.

O sinal não veio. Uma ideia brilhante não veio. Deus ex machina não veio. Fiquei tanto tempo olhando para as minhas ideias que entendi que teria que fazer isso, pois é hoje.

Assim que achei as forças no meu peito, que já não se mais enchiam de ar, ele lembrou que eu ainda estava lá. Não sei quanto tempo se passou, mas ter passado tanto tempo nesse exploração de migalhas, sozinha, diz muito sobre como era esse normal.

“Precisamos conversar”

“Venha para o sofá”

“A conversa é séria, prefiro falar na mesa” – acreditava que a madeira iria amortecer o impacto das palavras entre minha boca e seus ouvidos.

Ele insistiu, fui para o sofá. Já sabia que a dor seria real, quis tentar amenizar cedendo mais uma vez.

“Quero terminar”

Demoro para acreditar que essas palavras saíram de mim. Não ensaiei antes. Senti orgulho de ter conseguido falar o que estava há meses me perseguindo. Não posso aceitar que eu ia deixar a normalidade para trás. Não acredito que eu não me encaixo naquele cenário, naquela hora, com aquela pessoa. Tem algo de muito errado comigo, sempre achei. Isso é um sinal. Não mereço nem essa vida e nem qualquer outra.

O orgulho se dissolve. Vejo no olhar o outro a decepção cortante. Corta minha alma saber a dor que eu era capaz de causar. O olhar perplexo de quem não acredita no que ouviu. O olhar descrente de quem um dia amei sobre o que eu disse.

Como explicar, se estava tudo tão normal?

Será que eu tentei de tudo? Será que nessa década eu dei o meu melhor? Será que eu era capaz de amar alguém e tratá-lo bem? Será que todas minhas falhas pessoais não me fizeram covarde de não tentar mais?

Horas se passaram. A exploração de migalhas segue em dupla agora. Cada um contando as migalhas que caíram de sí para construir esse normal. Ele justifica o quanto eram valiosas as migalhas. Eu explico que essas migalhas não me faziam bem. Não por serem pequenas, mas porque a felicidade não se entrega de forma tão fácil. Era preciso ter juntado as migalhas e feito algo melhor.

Horas se passaram. Ele entende que não tinha mais migalhas para oferecer. Eu mostro que não daria mais minhas migalhas. Chove. Tenho fome. Tenho vontade de sumir. Tenho vontade d  e me abraçar. Tenho vontade de chorar.

Dou uma volta. Penso em tudo o que foi dito. Que eu não era justa, que eu não fiz meu melhor. Como algo. Choro. Me odeio. No telefone acho ombros amigos. Conto o que se passou. Entendo o que passou. Mais uma vez a culpa era minha. Mais uma vez ele não podia fazer mais nada por mim. Mais uma vez estava nas minhas mãos.

Retorno para o lugar que não é mais meu lar. A chuva para. Não sinto frio. Não sinto medo. Não sinto fome. Não sinto mais. Preciso sair daqui. Mais uma vez o telefone me ajuda e tenho onde me abrigar.

Aviso ele que vou e eu volto, mas que não será permanente esse retorno. Volto para tirar das sua vista as lembranças de que um dia fiz parte de sua vida. Volto para levar aquilo que me faz sentido carregar para seguir meu caminho. Volto apenas para encerrar o que começamos.

Ele ainda tenta me convencer. 

“Você não tentou tudo”

“Não, mas eu não quero tentar mais”


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