O petróleo salvou as baleias?

Várias pessoas tem a crença de que a evolução das tecnologias vai resolver nossos problemas, como a emergência climática atual. Um exemplo que tem voltado a ser usado bastante é que “o petróleo salvou as baleias”. Mas como assim?!

As baleias foram caçadas há milênios. Povos originários, em especial nas regiões próximas ao Ártico, caçavam baleias por motivos de subsistência e culturais. Aproveitavam a carne para alimentação, o óleo pra combustível, impermeabilização, etc…, as barbatanas (que a baleia usa para filtrar pequenos crustáceos pra se alimentar) para fazer cestos, os ossos para criar ferramentas e outros artefatos, além dos usos culturais.

A partir do século 16 tivemos a expansão do mercantilismo, crescimento das cidades e depois o advento de máquinas a vapor, o óleo de baleia começou a ser consumido em maior quantidade para outros povos. Nas cidades o óleo de baleia era utilizado para iluminação pública, fazer velas, como argamassa de construções ou para impermeabilização em alguns lugares, para produzir sabão, como lubrificante de equipamentos, entre outros usos como o ambargris para para fixar perfumes. Dos usos dos produtos da caça das baleias, o óleo combustível era o mais utilizado.

Quando começaram a surgir outras alternativas se esperava que as baleias fossem deixadas em paz, já que a caça delas também não era algo tranquilo. A querosene foi criada em 1854. Grandes depósitos de petróleo nos EUA foram descobertos em 1861. Era de se esperar que a captura e consumo de óleo de baleia fossem diminuir.

Charge da revista Vanity Fair, de 1961. “Grande Baile dado pelas Baleias em Honra da descoberta dos poços de Petróleo na Pensilvânia”.

Porém a captura de várias baleias, como a cachalote, continuou a crescer.

Captura de Cachalotes de 1800 a 1979. Fonte: https://www.resilience.org/stories/2020-06-29/why-oil-didnt-save-the-whales-and-why-it-matters/

Avanços perigosos

A caça comercial às baleias era feita no princípio com navios à vela, barcos à remo e arpões lançados à mão.

A caça comercial, no começo, era feita com navios à vela, barco a remo e arpões lançados à mão. Por isso acabavam capturando baleias específicas que conseguiam alcançar e subir elas para o barco. As baleias franca (em right whale, tradução: baleia certa) teriam esse nome por serem “as baleias certas para serem caçadas” já que nadavam com velocidade de até 7 nós e boiavam depois de mortas. Baleias que nadavam mais rápido e/ou que afundavam após a morte se safavam por serem menos visadas.

Após 1860 começaram a aparecer algumas inovações voltadas para a indústria baleeira: navios à vapor (mais rápidos), o canhão lança-arpão que tinha, explosivos na ponta para matar mais facilmente as baleias e compressores de ar que podiam içar as baleias mais pesadas à bordo. Esses avanços tecnológicos só foram possíveis pelo uso de combustíveis fósseis como petróleo e carvão.

Em 1920, havia navios-fábrica que além de capturar faziam parte do processamento das baleias a bordo. Assim armazenavam apenas os produtos que interessavam e descartavam no mar os resíduos. A cada viagem poderiam matar mais baleias e capturá-las cada vez mais longe. As baleias-azuis, e semelhantes que nadavam mais rápido que tendiam a afundar, foram muito visadas a partir desse momento de uma pesca baleeira industrializada.

Captura de Baleias-Azuis. Fonte: Clark, 1973 (The Economics of Overexploitation)

O consumo do óleo de baleia como fonte de energia diminuiu bastante após 1950, em especial no EUA. Pra onde ia esse óleo de baleia, então?

Produção, consumo de óleo de baleia para iluminação. Fonte: O’Connor e Cleveland, 2014 (U.S. Energy Transitions 1780–2010)

Os principais fim para o óleo eram: produzir sabão, explosivos e margarina. Com as práticas de higiene sendo mais difundidas, a produção e uso de sabão aumentou bastante a partir dos anos 1800 e continuou até o advento da margarina. Durante a Primeira Guerra Mundial a produção de nitroglicerina (explosivo) dependeu muito do óleo de baleia. A partir de 1930, o processo de hidrogenação estava bem estabelecido e grandes indústrias utilizavam o óleo de baleia para produzir margarina. Como disse Seth Miller, as baleias foram passadas em torradas.

A partir de 1940 os estudos biológicos e ecológicos, que evoluíram com o avanço de tecnologias para estudar e explorar o mar após a Segunda Guerra Mundial, mostraram que os estoques baleeiros estavam muito perto de acabar. Com isso foi formada a Comissão Baleeira Internacional (CBI), em 1949, com a intenção de regulamentar a caça às baleias e impedir o colapso dessa indústria. As principais nações baleeiras faziam parte da Comissão, mas relutavam em aceitar grandes restrições.

As cotas propostas não funcionaram muito bem. Em 1982, as populações de baleia eram tão pequenas que não permitiam o funcionamento adequado da indústria baleeira e havia uma grande pressão popular para acabar com a caça às baleias. Nesse ano a CBI propôs uma moratória (uma proibição) da caça às baleias que entrou em vigor em 1986. Alguns países que não fazem parte da CBI ignoram essa moratória e a moratória não vale para povos originários, que caça para subsistência e motivos culturais, e para pesquisa científica.

Um ponto positivo da moratória é que tem contribuído muito para o crescimento de algumas populações, como a das jubartes, porém outras ainda estão ameaçadas de extinção.

Baleia Climática

Nossa história mostra que a falácia de que os combustíveis fósseis terem protegido as baleias não condiz com a realidade. Se fosse verdade, a partir de 1900 as baleias estariam livres da caça e não teríamos precisado de uma moratória que veio apenas em 1986. Propagar essa fala faz com que mais pessoas acreditem que os avanços tecnológicos por si só irão resolver a emergência climática que temos no momento.

Os recursos naturais quando são consumidos por uma lógica de lucro, e não de subsistência, tendem a sofrer muito mais. A comodificação da Natureza aponta para um caminho de exploração sem fim além de colocar em risco o acesso dos povos originários a esses bens.

Também temos exemplos de que as tecnologias energéticas já avançaram bastante, mas isso não fez com que o consumo de combustíveis fósseis diminuísse. A melhoria energética de equipamentos também acarreta no aumento de consumo de eletricidade (Polimeni et al. 2008). Mesmo o uso de meios digitais não fez com que diminuísse o consumo de papel (Sellen and Harper 2002).

A gente vai ter que encarar a emergência climática de outras formas. Precisamos olhar pelo lado da nossa sociedade: por que estamos impactando negativamente a natureza e para o benefício ou prejuízo de quem? Por que estamos acabando com o equilíbrio planetário sem trazer grandes benefícios à sociedade? Isso vai nos levar a questionar o modelo econômico que está muito vinculado às desigualdades da nossa sociedade.

Não vamos deixar a emergência climática ser tratada como a caça às baleias. Precisamos mais do que nunca nos engajar em movimentos, coletivos, na política, nas discussões, nas ações para que possamos construir caminhos possíveis para que a gente tenha um mundo ok no fim da nossa vida.

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Referências

York R. Why Petroleum Did Not Save the Whales. Socius. January 2017. doi:10.1177/2378023117739217 https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/2378023117739217

Martyn Gorman · University of Aberdeen · Department of Zoology · © 2002 https://www.scran.ac.uk/packs/exhibitions/learning_materials/webs/40/index.htm

Clark, C. W. (1973). The Economics of Overexploitation. Science, 181(4100), 630–634. doi:10.1126/science.181.4100.630 https://science.sciencemag.org/content/181/4100/630 

O’Connor, P.A.; Cleveland, C.J. U.S. Energy Transitions 1780–2010. Energies 2014, 7, 7955-7993. https://doi.org/10.3390/en7127955

https://www.iwm.org.uk/history/why-whales-were-vital-in-the-first-world-war

https://medium.com/the-mission/we-did-it-to-make-margarine-d51c3d4825ec

https://www.weforum.org/agenda/2019/10/whales-endangered-species-conservation-whaling/

Polimeni, John M., Mayumi, Kozo, Giampietro, Mario, Alcott, Blake. 2008. The Jevons Paradox and the Myth of Resource Efficiency Improvements. London: Earthscan.

Sellen, Abigail J., Harper, Richard H. R. 2002. The Myth of the Paperless Office. Cambridge, MA: MIT Press.

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