Um tratado pr’álem das fronteiras

Depois de 20 anos sendo construído, finalmente temos um Tratado da Biodiversidade Além das Jurisdições Nacionais. Conhecido pela sigla BBNJ (Biodiversity Beyond National Jurisdiction Treaty) ou também como “Tratado do Alto Mar”.

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Além das Jurisdições Nacionais

O termo Jurisdição Nacional se referem à Zona Econômica Exclusiva (ZEE) de cada nação que é a faixa de 200 milhas náuticas (mn) a partir da linha de costa de cada país. Pode ser menor caso essa extensão sobreponha a mesma faixa de outra nação, nesse caso é necessária uma negociação para definir a fronteira marítima.

Ilustração das zonas jurisdicionais. Até 12 milhas náuticas, é o "Mar Territorial", de 12 milhas a 24 milhas é a "Zona Contígua", da linha de costa até 200 milhas é a "Zona Econômica Exclusiva". Se Plataforma Continental for mais larga pode permitir uma possível extensão da ZEE. As Águas internacionais são as águas além da ZEE.

A ZEE pode ser extendida. Caso a plataforma continental ultrapasse as 200 mn, o país pode solicitar a ampliação da ZEE. O Brasil está nesse processo pedindo extensão na parte norte, sul e sudeste da nossa ZEE.

Infográfico mostrando a parte oriental do mapa do Brasil, destacando no oceano o Mar Territorial (faixa de 12 milhas náuticas), a Zona Exclusiva Econômica (faixa de 200 milhas náuticas) e os limites da plataforma continental brasileira que são as áreas de pedido de extensão da ZEE. A extensão seria na parte norte da ZEE e na parte Sul e Sudeste.

Expandir a ZEE pemitirá que o Brasil possa explorar minérios e outros recursos numa área maior. Aliás, o papo de Amazônia Azul tem muita relação com essa visão de soberania e exploração de bens naturais, o termo começou a ser usado no mesmo ano que o Brasil pediu a extensão da ZEE.

Voltando… As águas além das jurisdições nacionais são aquelas que não estão nas ZEEs dos países. Elas representam 43% da superfície do planeta ou 61% de todo o oceano.

Gráfico de setores ilustrado mostrando como é composta a superfície da Terra. 27% é de águas jurisdicionais, 43% de águas além das jurisdições nacionais, 2,75% é a Antártica, Rússia é 3,34% da superfície, Canadá 1,96%, China 1,88%, Estados Unidos da América 1,87%, Brasil 1,67% e demais países. Ilustração de visualcapitalist.com

Essas áreas não-jurisdicionais são regidas por acordos multilaterais e tratados internacionais, como a Convenção da ONU sobre o Direito do Mar, conhecida pela sigla em inglês UNCLOS, celebrado em 1982.

Mapa mundi em projeção Mercator mostrando as áreas marinhas jurisdicionais ao redor dos continentes em cor azul clara e as águas além das jurisdições internacionais em azul escuro.

Com as tecnologias recentes das últimas décadas foi se descobrindo que o oceano além das jurisdições possui uma grande biodiversidade e recursos minerais importantes. Sem falar em recursos pesqueiros comerciais, pois com o colapso dos estoques pesqueiros próximos às costas, a indústria pesqueira tem extraído cada vez mais pescados do alto mar.

São regiões muito pouco conhecidas pela ciência. Se mesmo dentro da ZEE existem grandes dificuldades de acesso para coleta e pesquisa, a necessidade de instrumentos muito específicos para altas profundidades ou mesmo falta de investimento nacional em ciência, em especial para países do Sul Global, em regiões de alto mar esse tipo de pesquisa é em geral feita por países ricos.

O fundo do mar profundo, fora das áreas jurisdicionais, foi reconhecido pela UNCLOS como um Patrimônio Comum da Humanidade. O que significa que deve ser protegido para as futuras gerações e que qualquer exploração desse ambiente deve ter seus benefícios, como lucro, compartilhados com todos.

Avanços do Tratado

O BBNJ vem para discutir e criar acordo básicos relacionados à biodiversidade dessas áreas do “Alto Mar”. É um acordo juridicamente vinculante (“legally binding”), ou seja, que os países que ratificarem são obrigados a seguir, caso não cumpram podem ser sujeitos a penalidade.

Foram 20 anos de elaboração, começando em 2002 com discussões sobre a proteção marinha e em 2004 com um grupo de trabalho para avaliar a biodiversidade em alto mar. Ser juridicamente vinculante contribuiu para a demora, e as negociações foram concluídas em 4/março/2023.

Infográfico mostrando a linha do tempo do Tratado do Alto Mar.
2002: ONU discute a proteção do ambiente marinho
2004: Assembleia Geral da ONU cria grupo de trabalho para o estudo da biodiversidade além das jurisdições nacionais
2005 - 2015: Mais de uma década de estudos e ações de advocacy
2016-2017: reuniões para elaborar pontos chave do tratado (PrepComs)
2018-2022: Negociações oficiais da ONU (conferencias IGC1-IGC5)
2023: Rodada adicional de negociações (IGC5.2) com intenção de concluir o tratado. Fonte da imagem High Seas Alliance - Treaty Timeline

O tratado buscou responder, por exemplo, as perguntas: Como o Alto Mar deve ser estudado, monitorado e protegido? Quem deve lucrar com as descobertas nesse ambiente? Atualmente cerca 1,5% do Alto Mar está sob alguma forma de proteção ambiental e 0,8% está em áreas altamente protegidas de impactos pesqueiros.

Dois reconhecimentos importantes foram inseridos no acordo: a determinação do Alto Mar como um Patrimônio Comum da Humanidade e o estabelecimento da relação entre acordos climáticos e acordos do Direito do Mar. Este último vai tornar mais fácil a inclusão do oceano nas discussões sobre clima, contribui para o reconhecimento da ligação entre mudança climática e perda de biodiversidade e da necessidade de melhoria nas pesquisas oceânicas para o entendimento da crise do clima.

A grande maioria das pessoas que acompanham o histórico do acordo receberam com grande alívio e alegria o resultado das negociações. Porém foram apontados alguns aspectos que poderiam ter sido minimizados para que a negociação contasse com mais participação da sociedade. Dentre os pontos tiverem a falta de inclusão das vozes dos povos indígenas, falta de espaços físico para representantes da sociedade civil e como houve discussões por tempo além do proposto inicialmente algumas pessoas não puderam acompanhar pela falta de tradutores que tiveram que encerrar seu trabalho.

O que ficou determinado

O tratado elabora regras sobre 4 tópicos chave para águas não-jurisdicionais:

  • Criação e gestão de áreas marinha protegidas
  • Estudos de Impacto Ambiental de atividades humanas
  • Compartilhamento de Recursos Genéticos Marinhos
  • Financiamento e transferência tecnológica para nações em desenvolvimento

O BBNJ não criou nenhuma área marinha protegida, apenas as regras para que elas possam ser criadas. Isso vai contribuir com a iniciativa 30×30, que buscar preservar 30% da parte terrestre e marinha do planeta até 2030, que também é uma das meta da Conferência da Biodiversidade. Espera-se que a partir da implementação do tratado seja mais fácil a criação dessas áreas em alto mar por agora existirem regras mais objetivas.

A partir da implementação do tratado serão necessários estudos de avaliação de impacto ambiental para atividades realizadas em Alto Mar e para atividades feitas na ZEE das nações que possam ter impacto nas águas não-jurisdicionais. Órgãos que serão criados a com a implementação do BBNJ avaliarão esses estudos para definir como essas atividades impactantes deverão ser monitoradas ou se poderão ser executadas. Há dispensa de estudos para atividades cujo impacto já são amplamente conhecidos e que já possuam regulação de como prevenir e mitigar potenciais impactos.

Sendo as Áreas além das Jurisdições Nacionais um Patrimônio Comum da Humanidade, todos os seus recursos devem ser compartilhados, inclusive os genéticos. A busca por fármacos e outras substâncias que podem ser úteis à humanidade deverá compartilhar os dados de forma aberta, permitindo que outras nações possam se utilizar dessas informações. Também se estabelece o compartilhamento dos benefícios desses recursos, o que inclui lucros comerciais.

Países do Norte Global em geral tem mais investimento em ciência oceânica, equipamentos de pesquisa marinha e frotas de pesquisa. Por ser uma pesquisa tão custosa, países do Sul Global tem oportunidades muito reduzidas de pesquisar e encontrar novos recursos genéticos marinhos ou mesmo de explorar comercialmente áreas além da sua jurisdição. Foi acordado que haverá mecanismos de financiamento e transferência tecnológica para o Sul Global, permitindo algo mais próximo de um equilíbrio no acesso ao Alto Mar e seus recursos.

E agora?

O texto do acordo foi negociado e agora se encontra quase pronto, ainda precisa de algumas correções menores como grafia por exemplo. Só que isso não significa muita coisa se os países não ratificarem o BBNJ. É necessário que ao menos 60 nações estejam de acordo com o novo tratado para que ele possa começar a ser implementado de fato.

Esse é um avanço importante e necessário para alcançarmos as metas da Década do Oceano. Torço para que implementação do tratado ocorra o mais breve possível, ainda dentro da Década.

Quer saber mais?

Webinário- Gern: Tratado BBNJ: o presente e o futuro.

Documentos da ONU sobre o BBNJ: https://www.un.org/bbnj/

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