Marta Vannucci

Nascida em 10/05/1921 em Florença, aos nove anos sua família se mudou para o Brasil, fugindo do governo de Mussolini. Seu pai, Dino, era médico-cirurgião e militante antifascista, havia chegado primeiro ao Brasil e alguns anos depois veio o restante da família. Como a família Vannucci era tradicional, famosa e rica e Dino era um homem muito culto, ele se aproximou da comunidade científica brasileira. Foi o pai de Vannucci que contribuiu para seus primeiros contatos com a ciência, tanto que ela já disse: “Quem realmente formou minha alma de cientista foi meu pai.”.

Pouco depois do falecimento de seu pai, Vannucci ingressou no curso de História Natural da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. O campo da história natural quase não existe mais, mas ele aborda áreas como biologia, química, geologia e física. As oceanógrafas aqui vão se sentir representadas por esse curso. Muitos naturalistas ainda praticavam ilustração científica para registrar suas observações, pois a fotografia nem existia no princípio desse campo, e assim deixaram pranchas de desenho magníficas com as de Haeckel, como essas:

Outros Naturalistas bem famosos são: Darwin, Humboldt, Carl Linnaeus e Mary Anning. Hoje em dia alguns cientistas defendem que nós voltemos a valorizar a abordagem naturalista, como mostra o artigo de opinião da Jennifer Frazer sobre isso.

Precisamos ressaltar alguns fatores da época. No final do séc. XIX as grandes cidades brasileiras aceleraram sua urbanização. Após a I Guerra Mundial, haviam mais mulheres que desejam estudar e trabalhar, buscando sua autonomia. Mudanças sociais provocadas pela urbanização trouxeram uma certa redefinição de gênero e o Estado passou a normalizar um pouco mais a presença da mulher na esfera pública. Claro que as leis ainda dificultavam a autonomia patrimonial das mulheres, que ficam com seu patrimônio sob autoridade do marido ou do pai. Junto disso havia um crescente discurso nacionalista que pregava que as massas urbanas deveriam ser incorporadas à sociedade por meio do trabalho e para isso precisavam de formação educacional. No Brasil, a Era Vargas implementou políticas que ampliaram a possibilidade das mulheres se escolarizarem (Azevedo & Ferreira, 2006). Algumas décadas depois, isso permitiu às mulheres urbanas e de famílias mais endinheiradas que pudessem seguir na carreira acadêmica. Por isso temos que considerar que além do seu próprio esforço, condições sociais foram muito importantes para que Vannucci se tornasse a incrível cientista que foi.

Aos 23 anos defendeu sua tese de doutorado com o título de “Hydroida Thecaphora do Brasil”. O pesquisador Thomás Banha me explicou que hoje em dia, Hydroida corresponde à Sub-classe Hydroidolina e Thecaphora à ordem Leptothecata, que são classificações de hidrozoários (animais que tem uma fase da vida como medusa, água-viva). Seu orientador foi Prof. Ernst Marcus, cientista renomado mundialmente que veio se refugiar no Brasil com o advento do Nazismo. Ela também trabalhou para ele como assistente de zoologia.

Nesse mesmo ano foi criado o Instituto Paulista de Oceanografia (IPO). Instituído em 1946, o IPO estava sob gestão da Secretaria de Agricultura e era coordenado por Wladimir Besnard, pesquisador russo radicado no Brasil. O principal objetivo era pesquisar o mar para melhorar a pesca e exploração de recursos do litoral paulista. Besnard convidou Vannucci para trabalhar no IPO compondo a equipe de cientistas. Tanto Besnard quanto Vannucci tinham a clareza que não fazia sentido que o IPO fosse tão voltado para a pesca. Então, entraram em contato com a Universidade de São Paulo buscando que o IPO fosse incorporado à universidade para que pudessem ampliar o escopo das pesquisas do instituto.

Numa conversa com Elizabeth Harkot De La Taille quando Vannucci já tinha seus 96 anos, ela contou que o governo estadual queria transferir o IPO para a USP, mas sem transferir a verba. Vannucci ia conversar com as autoridades todo dia. Detalhe: ela estava grávida. Ela mesma disse, “Acho que acabaram nos passando a verba para se livrarem de mim, por medo de o bebê nascer lá!” . Em menos de um ano a transferência para a USP foi concluída, em 1951, e o IPO foi renomeado como Instituto Oceanográfico (IO). Nesse mesmo ano aconteceu a criação do CNPq, o que me dá a impressão de que a ciência brasileira florescia lindamente nessa época.

O IO focou sua pesquisa nas áreas de oceanografia física, química e biológica. Logo foram criadas duas bases de apoio a pesquisas no litoral paulista, uma em Cananéia e outra em São Sebastião. Em 1954, foi adquirido um terreno em Ubatuba que também se tornaria mais uma base de pesquisa. Combinando a experiência do Prof. Wladimir Besnard nos manguezais da Ásia com disponibilidade de embarcações de pequeno porte, as pesquisas do IO se concentraram na região de Cananéia, no extremo sul do litoral paulista, que possui uma extensa área de manguezais. Já em São Sebastião, no litoral norte paulista, eram necessárias embarcações e equipamentos menos acessíveis na época, portanto houve menos pesquisas por lá.

Vannucci atuou na seção de Oceanografia Biológica, com invertebrados marinhos, em especial com plâncton. Organizou eventos científicos como o Primeiro Simpósio Latino-Americo sobre Plâncton, além de “colóquios” que se tratavam de palestras dos pesquisadores do IO sobre sua pesquisas, então, galera do café com ciência do IOUSP, vocês estão dando continuidade a uma ação da Vannucci. Em 1955 foi convidada a ser membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), sendo a primeira mulher a participar dessa sociedade que até hoje atua pela ciência brasileira.

O IOUSP foi a primeira instituição de pesquisa oceanográfica do país e graças a um programa junto à UNESCO, passou a receber bolsistas de vários países da América Latina para receber treinamento na prática de trabalho de campo e de laboratório. O IOUSP foi a porta de entrada para muitos pesquisadores latinos que depois seguiram carreira na Europa e EUA. Vannucci trabalhou para a internacionalização do IOUSP, mantendo proximidade com sociedades científicas e com a UNESCO. Chegou a receber uma bolsa dessa organização em 1956 para investigações na Escócia. Ela aproveitou esse período para visitar outros centros com pesquisa mais avançada sobre plâncton.

Besnard continuou como diretor do IOUSP até 1960, ano em que ele faleceu. A próxima pessoa a assumir foi Ingvar Emilsson, pesquisador islandês, que foi quem fortaleceu a área da oceanografia física no instituto. 

Em 1964, Marta Vannucci assumiu como diretora e trabalhou com 3 objetivos: a construção de um prédio para o IOUSP,  construção de um navio de pesquisa e a organização dos cursos de pós-graduação. Isso é que é uma pessoa que sabe o que quer fazer.

Construir um navio não é tarefa fácil, nem barata. Essa empreitada começou nas gestões anteriores a de Vannucci, já quando Besnard era diretor. Em 1958, o pesquisador Emilsson liderou o início da busca por recursos e da definição das linhas gerais de como deveria ser um navio voltado para a pesquisa oceanográfica que atendesse a ciência brasileira.

Primeiro conseguiram verba com a União do Governo Federal e com a Secretaria de Agricultura. Com Cr$ 30 milhões, foi encomendado o projeto do navio ao coordenador do curso de Engenharia Naval da POLI (USP), Almirante Yapery Tupiassu de Britto Guerra. O projeto foi supervisionado pelo coordenador e foi executado por alunos da POLI como seu projeto de conclusão de curso, eles eram da primeira turma de engenheiros navais da POLI. Imagina você fazer um trabalho de conclusão de curso que vai ter um impacto desses na história da ciência brasileira? Um modelo do navio em escala menor foi construído para testes no tanque de provas do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Para criação do navio o IOUSP buscou toda colaboração possível com ciência pública brasileira.

Com o avanço do projeto foram requisitadas mais verbas para a execução do projeto do navio, obtidas com o governo federal e estadual. Além dessas fontes de recursos, a CAPES, o CNPq e a FAO (Organização da ONU para alimentação e agricultura e não Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) contribuíram também para equipar o navio.

A construção do navio foi feita em Bergen, na Noruega, e contou também com financiamento da Fundação Ford para o acompanhamento do projeto por um engenheiro brasileiro. O lançamento do casco ao mar aconteceu em agosto de 1966. O navio ficou de fato pronto em maio de 1967 e foi batizado com o nome de Prof. W. Besnard, em homenagem ao cientista que tanto trabalhou para o desenvolvimento do Instituto Oceanográfico. Depois de algumas viagens experimentais pelos mares noruegueses, o navio rumou para o Brasil deixando a Noruega em 10 de junho.

Qualquer pesquisadora marinha sabe que o tempo embarcada deve ser aproveitado ao máximo para coletar dados. Os pesquisadores se planejaram para fazer a primeira expedição científica a bordo do Besnard já na viagem para casa. A expedição foi batizada de VIKINDIO, uma aglutinação de Viking (pela história da Noruega) e Índio (remetendo ao Brasil). Um parênteses: se você gosta de trocadilhos ruins e anagramas doidos, a ciência brasileira oferece eles aos montes.

Navio Prof. W Besnard

O N/Oc. Prof. W. Besnard tem muita história por si próprio, por motivos de tempo, vou ficar devendo mais detalhes. Mas antes de encerrar esse tópico: Em 2008, quando o navio tinha 41 anos, ele sofreu um incêndio que trouxe muitos danos. Dificuldades orçamentárias da Universidade, a necessidade de ter um navio mais moderno para pesquisa, entre outros pontos, culminaram na não recuperação do navio. O IO optou por investir numa embarcação mais moderna, o Alpha Crucis, que substituiu o Besnard. As opções que restaram ao velho navio foram se tornar um museu ou ser transformado em recife artificial. Ambas opções são muito caras: Para mantê-lo como um museu flutuante é necessária uma grande reforma que não consegue ser custeada pelos órgãos de fomento à pesquisa e nem órgãos de conservação do patrimônio histórico-cultural brasileiros. Tornar um navio desse porte um ponto de turismo de naufrágio também traz custos como estudos de impactos ambientais e remoção de quaisquer contaminantes antes do afundamento. Até onde sei, hoje o navio está sob cuidados de uma ONG que pretende torná-lo um museu, mas no momento ainda não tem recursos ou onde manter o navio.

Se quiser saber mais sobre naufrágio de embarcações, tem o Entrevista à Vista #6 que a Ma Thevenin fez aqui no Submerso com o Prof. Francisco Barros.

Voltando a Marta, acredito que contar essa tour toda do navio ajuda a colocar em perspectiva os desafios que ela encarou, aproveitando também que há um ótimo acervo de memória sobre a história do N/Oc. Besnard. No site do IOUSP há uma sessão que tem diversos detalhes sobre o navio e sua história. Na gestão de Vannucci, que se seguiu de 1964 a 1969, além de garantir que o processo de construção e aquisição de verbas para o navio não fosse interrompido, ela ainda geria o Instituto, fazia sua pesquisa e buscava seus outros dois objetivos como diretora: a organização dos cursos de pós no IOUSP e a construção do prédio da unidade. Recurso financeiro também ajuda: com uma doação de 1 milhão de dólares da Fundação Ford, a Diretora Vannucci pode dar início aos cursos de pós e equipar melhor o navio.

Vannucci recebeu um convite para trabalhar na UNESCO mas estava firme em seguir com seus três objetivos como diretora e o recusou. Acabou indicando um pesquisador cubano, já que Cuba recentemente havia passado pela sua Revolução e ele estava a busca de uma posição.

A construção do prédio do Instituto Oceanográfico foi realizada na gestão de Vannucci, mas sua conclusão aconteceu apenas em 1970, após o fim de sua gestão, que transferiu fisicamente o instituto para a Cidade Universitária que compõe o atual campus São Paulo da USP. É o prédio de janelinhas amarelas, entre a FAU, IB, IME e IF. Na parte mais baixa da rua do Matão. Alguns professores mais antigos já me contaram que depois de uma chuva bem forte, nos primórdios do prédio, um monte de lama desceu da Rua do Matão e que praticamente enlameou todo o instituto.

Em 1966, foi dado início aos cursos de pós-graduação do IOUSP, contando com uma aula inaugural de Vannucci. Pelo o que consegui levantar de informações, havia apenas os mestrados em oceanografia biológica e oceanografia física.

Em 1969, Vannucci foi aconselhada a deixar a direção do IOUSP. O Brasil passava pelo período da ditadura militar. Um ano antes foi promulgado o AI-5 que limitava muito as liberdades civis. Não há registro de posicionamentos políticos de Vannucci e não se sabe se ela participou de algum movimento feminista ou de esquerda. 

Vannucci recebeu mais uma vez o chamado da UNESCO para trabalhar na organização. Ela já havia concluído a construção do navio, o início da pós-graduação e assegurado o andamento da construção do prédio. Somando-se o clima de cerceamento no Brasil, o novo convite foi visto com outros olhos. A UNESCO a convidou para dois cargos: um em Paris, que seria uma atividade burocrática, e outro em Cochin, na Índia, onde atuaria como especialista em oceanografia. Optou em ir para a Índia, já que “queria estar fora do mundo ocidental”.

Antes de seguir contando sobre a carreira internacional da Vannucci, alguns comentários sobre a condição dela ser uma mulher na ciência. Seu primeiro marido era assistente na faculdade e viria a se tornar professor universitário e seu segundo marido trabalhava no IOUSP. Ela teve 2 filhos, um de cada casamento. Contou com muito apoio dos sogros do segundo casamento, que tratavam Marta como sua própria filha e ajudavam a cuidar das crianças .

Não temos muitos registros sobre situações de sexismo que Vannucci passou. Na entrevista de 1993 ao Prof. Drude de Lacerda, ela contou: 

“Um dia, aqui no Rio, eu falava com o diretor do Banco do Brasil, preocupada pois a licença [de importação do navio] não vinha e o navio estava por ser lançado ao mar, e ele disse: Mas minha senhora, por que a senhora se preocupa tanto? Com um tempo tão bonito, por que não vai à praia tomar um belo banho de mar? Indignada, eu disse: Está certo. Levantei e parti direto para o Itamarati. Lá encontrei o máximo apoio e me ouviram atentamente…”

Na Índia, Vannucci ficou encarregada de concluir a criação de um laboratório de pesquisas em plâncton para processar amostras de cruzeiros de 17 navios que coletaram no Oceano Índico. A pesquisadora já tinha até participado de um dos cruzeiros desse projeto em 1964, que foi uma iniciativa da UNESCO por conta da ausência de dados nessa bacia oceânica.

Após finalizar a conclusão do laboratório, em 1972, Vannucci foi convidada a ir para o México para organizar um laboratório de triagem de plâncton na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam). Encerrando essa atividade em 1974, ela retornou à Índia. Não encontrei registros se a família de Vannucci a acompanhou nesse período internacional. Acredito que seus filhos e marido tenham ficado no Brasil.

O seu filho mais velho, Érico Vannucci Mendes, foi preso durante a ditadura. Veio a falecer em 1986, com 42 anos, devido a sequelas das torturas sofridas. Em 1988, Marta Vannucci se juntou com o CNPq e a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) para criar e patrocinar um prêmio em homenagem a seu filho falecido. O Prêmio Érico Vannucci Mendes é destinado aos estudiosos que se destacaram em realizações de estudos e pesquisas sobre a Cultura brasileira e preservação da memória cultural, especialmente as tradições populares e os traços culturais das minorias étnicas e sociais. Essa foi a forma que Vannucci encontrou de dar continuidade ao trabalho que o filho fazia.

A última notícia sobre o prêmio que encontrei foi de 2013. Nessa notícia tem um link que indica uma página no site do CNPq com informações sobre o prêmio (http://www.cnpq.br/sobrecnpq/premios/ericovannucci/index.htm ) mas ele está apenas redirecionando para a página inicial do CNPq, talvez não tenha mais informações por lá. No site da SBPC também não localizei informações organizadas sobre o prêmio. Não sei se o prêmio continuará.

Depois do México, passou a trabalhar no escritório regional da UNESCO como diretora em Nova Delhi, na Índia, cuidando de diversos programas das áreas de: ciências marinhas, ciência da água doce, ciências da Terra, educação superior, ecologia, e outros.

A partir de 1983 ela passou a trabalhar com manguezais da Ásia e Pacífico na posição de CTA (Chief Technical Advisor). A previsão era que o projeto durasse 2 anos, mas foi tão bem sucedido que foi estendido para o total de 8 anos, incluindo 22 países. O projeto realizou cursos de treinamento, workshops, mais de 30 publicações e a publicação da série “Mangrove Ecosystems Occasional Papers”. Vannucci se tornou uma referência mundial em manguezais. Detalhe: quando Vannucci começou o projeto, em 1983, ela já tinha 62 anos. Em 1989, Vannucci se aposentou oficialmente, mas continuou trabalhando de graça por mais 2 anos no projeto para terminar as publicações.

Acho que não expliquei até agora, mas de forma bem resumida: os manguezais são ambientes de transição entre o oceano e o continente. Ocorrem em regiões tropicais e subtropicais. Por ser muito rico em nutrientes tem grande diversidade, além de funcionar como uma barreira do continente contra ressacas e eventos extremos. Se quiser saber mais eu fiz uma live no meu canal com a Sarah C. Sarubo que deu uma aula sobre esse ecossistema:

No final dos projetos da UNESCO sobre manguezais, surgiu a oportunidade para Vannucci trabalhar com o pesquisador Motohiko Kogo, que defendia que devemos plantar manguezais em todos os lugares em que eles podem existir. Esse pesquisador foi um dos responsáveis pela criação da Sociedade Internacional de Ecossistemas de Manguezais (ISME).

Na época, já se sabia que os manguezais têm uma alta capacidade de fixação de carbono e isso poderia contribuir para um impacto global positivo no clima. Isso sem falar nos demais benefícios que a recuperação dos manguezais poderia trazer para: a pesca, biodiversidade, proteção costeira, entre muitos outros.

Em 1991 a ISME publicou a “Carta dos Manguezais”, da qual Vannucci contribuiu com a construção. A Carta traz princípios fundamentais para a proteção dos manguezais em todo o mundo, deixando claro sua importância e quais ações eram indicadas à época. Muitas ações sugeridas, se não todas, continuam necessárias para os dias de hoje. Esse ambiente continua ameaçado, tanto que não faz muito tempo que o governo federal, que tem pouco interesse em conservação ambiental, tentou remover legislações que protegem os manguezais brasileiros.

Um dos principais eventos para o ambientalismo moderno foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que aconteceu em 1992 no Rio de Janeiro, também conhecida como Rio-92 ou Eco-92. Foi a primeira convenção da ONU pelo meio ambiente após a Guerra Fria e teve uma participação expressiva dos representantes dos países. Paralelamente aconteceu o Fórum Global de 1992 que reuniu ONGs, movimentos dos povos originários e outros movimentos sociais relacionados ao meio ambiente. 

Nesse contexto estava se discutindo a criação da “Carta da Terra”, que seria uma declaração de valores e princípios para trabalharmos por um mundo mais justo, sustentável e pacífico. Vannucci disse que ela sugeriu para a comissão que trabalhava nesse documento, durante a Rio-92, que utilizassem a Carta dos Manguezais como um modelo. Até hoje a Carta da Terra é utilizada como guia pelas mais diversas organizações sociais.

Nesse período, desde sua saída do IOUSP, Marta Vannucci visitou e trabalhou em 20 países. Falava diversos idiomas como italiano e francês, que aprendeu na infância,  português, inglês, um pouco de espanhol e também estudou alemão e sânscrito. A pesquisadora vinha anualmente visitar familiares no Brasil.

No seu período na Índia, Vannucci pode mergulhar em outro interesse: a Indologia, que é o estudo da cultura e religiões indianas. Nos registros que pude acessar quase não há menção sobre France, sua mãe, mas em alguns sites (Navas-Pereira, 2009; Neelakandan, 2019) se fala que sua mãe tinha interesse em misticismo e Vannucci também tinha essa faceta. Mesmo sendo apaixonada pela ciência, ela se interessava pela indologia antes mesmo de se mudar para o país.

Marta Vannucci com trajes típicos indianos

Ela tinha muito interesse nos Veda, que são textos religiosos nos quais se baseia o hinduísmo. Vannucci entendia que os Veda são completamente baseados na lógica e que mostram a lógica da Natureza. Vannucci entendia que a Filosofia se desdobra tanto em ciência quanto em religião, portanto, não lhe soa estranho o seu interesse nessas áreas vistas como tão contraditórias por algumas pessoas. Ela buscou nos Veda decifrar o código bio-ecológico. Vannucci publicou ao menos 5 livros relacionados à indologia e aos Veda.

Por volta de 2009 foi morar em Florença, sua cidade natal, e em 2014 Marta Vannucci voltou a morar no Brasil. No dia 15 de janeiro de 2021 ela faleceu em São Paulo, alguns meses antes de completar 100 anos de vida.

Marta Vannucci em 2019 . Foto de Luciano P. Souza | FAPESP

Uma cientista que ajudou a criar as bases para a Oceanografia no Brasil, mas teve raízes por todo o mundo. Marta Vannucci foi uma das pioneiras da ciência brasileira e contribuiu com ela das mais diversas formas, mesmo não presente fisicamente. 

Estudar e escrever sobre a história desta pesquisadora foi uma viagem e tanto. Muito especial para mim, já que cursei a graduação em oceanografia do IOUSP e pude me beneficiar de todo o trabalho que Marta e seus colegas tiveram para que hoje isso seja uma realidade, mesmo que às vezes o que temos seja subestimado por alguns.

Quando perguntada em 1993 se tinha alguma mensagem para a comunidade científica que estava enfrentando dificuldades (imagina se compararmos com hoje em dia…) ela disse: “trabalhar sempre com um ideal em vista e nunca esmorecer.”

O que podemos aprender com Marta Vannucci?

Marta Vannucci era de uma família abastada, não devemos esquecer que as oportunidades eram abundantes para ela. O que mais me sobressai da história dela é ela ter realmente clareza do que ela queria. Talvez ela não sabia aos 25 anos que faria parte do esforço para trazer o navio do IOUSP, mas me parece que ela sabia muito bem onde queria investir sua energia e focava até conseguir o que era importante para ela.

Essa não é uma ideia muito nova e muitas vezes mulheres não podem ou não conseguem se dedicar assim pois se cobra ou se espera que elas dediquem mais tempo que seus parceiros e familiares para o cuidado de assuntos domésticos. Ainda bem que a Vannucci não ficou presa nisso, conseguiu contar com o apoio de pessoas para o cuidado dos filhos e pode seguir sua carreira. Isso talvez seja assunto para outra conversa, mas acredito que foi essencial na vida dela. 

Outra qualidade dela que gostaria que nos inspirasse é a visão sistêmica. Em 1957, ela já compreendia que não bastava apenas olhar para um organismo para entendê-lo, mas também o ambiente que o cerca e suas relações (Vannucci, 1957). Vannucci também juntou a antropologia aos conhecimentos ambientais para entender o mundo. O trabalho de hiperespecialização é importante, mas também precisamos de um olhar inter e transdisciplinar, como a abordagem naturalista, para os atuais desafios que encaramos como as mudanças climáticas

Agradecimentos:

  • Thomás Banha por me ajudar com as dúvidas sobre “Hydroida Thecaphora”;
  • Alex Varela pelo diversos artigos e trabalhos feitos sobre Vannucci e sua contribuição para a ciência;
  • Luiz Drude de Lacerda pela entrevista realizada e disponibilizada;
  • Clarice Cudischevitch pelo artigo para a ABC;
  • e Elizabeth Harkot De La Taille pelo o artigo que trouxe mais nuances para que compusesse este perfil.

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Referências:

Azevedo, Nara, & Ferreira, Luiz Otávio. (2006). Modernização, políticas públicas e sistema de gênero no Brasil: educação e profissionalização feminina entre as décadas de 1920 e 1940. Cadernos Pagu, (27), 213-254. https://doi.org/10.1590/S0104-83332006000200009

Comissão da Carta da Terra. http://www.cartadaterrabrasil.com.br/prt/texto-da-carta-da-terra.html

Cudischevitch, Clarice. (2015). Marta Vannucci, a primeira mulher a se tornar membro da Academia Brasileira de Ciências. Academia Brasileira de Ciências (NABC). http://www.abc.org.br/2015/03/08/marta-vannucci-a-primeira-mulher-a-se-tornar-membro-da-academia-brasileira-de-ciencias/ 

https://canalciencia.ibict.br/ciencia-brasileira-3/notaveis/270-marta-vannucci

Frazer, Jennifer. (2014). Natural History is Dying, and We Are All the Losers. Scientific American. Blog The Artful Amoeba https://blogs.scientificamerican.com/artful-amoeba/natural-history-is-dying-and-we-are-all-the-losers/ 

Harkot De La Taille, Elizabeth. (2019). A Mulher que Navegou os Mares do Mundo. Revista PUB – Diálogos Interdisciplinares. https://www.revista-pub.org/post/04112019 

ISME. (1991). Charter for Mangroves (Carta dos Manguezais). http://www.mangrove.or.jp/img/sub_index/charter_en.pdf

Lacerda, L.D.; Vieira, C. (1993). Cientistas  Brasileiros  Notáveis:  Entrevista  Marta  Vannucci. Canal Ciência, Portal de  Divulgação Científica e Tecnológica. https://canalciencia.ibict.br/ciencia-brasileira-3/notaveis/270-marta-vannucci 

Melo, H. P.; Rodrigues, L. M.C.. (2016). Pioneiras da ciência no Brasil, Rio de Janeiro, SBPC http://www.sbpcnet.org.br/site/publicacoes/outras-publicacoes/livro_pioneiras.pdf

Navas-Pereira, Denise. (2009). Marta Vannucci: a pioneer in the study of jellies in Brazil. Jelly News – South America http://jellynews.blogspot.com/2009/10/marta-vannucci-pioneer-in-study-of.html

Neelakandan, Aravindan. (2019).  Amazon Burning: This Brazilian Scholar’s Views On Vedic Ecology Present A Lasting Solution.  Swarajyamag https://swarajyamag.com/ideas/amazon-burning-this-brazilian-scholars-views-on-vedic-ecology-present-a-lasting-solution

Nexo Jornal. (2020). A cientista que estudou os oceanos e construiu um navio: Marta Vannucci. https://www.youtube.com/watch?v=6PpZ2xFx3To 

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Varela, Alex Gonçalves. (2020). “Uma dádiva das marés”: os estudos sobre manguezais da cientista Marta Vannucci em sua trajetória internacional, 1969-1989. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 27(1), 115-132. Epub March 23, 2020.https://doi.org/10.1590/s0104-59702020000100007

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