Recentemente li “A Invenção da Natureza” escrito pela Andrea Wulf em 2015. Muitas pessoas da minha bolha social estavam indicando e falando como gostaram do livro. Tentei ignorar meu incomodo com o título do livro e embarquei na leitura para entender quem era o homem que dizem ter inventado a natureza.
Em 2019 foi comemorado os 250 anos de seu nascimento com vários eventos e homenagens pelo seu trabalho. O que Humboldt fez impacta o trabalho de muitos cientistas, pesquisadores, ambientalistas há um bom tempo, mesmo que não seja tão lembrado, como indicado no subtítulo em inglês do livro: “As aventuras de Alexander von Humboldt o herói esquecido da ciência” (The adventures of Alexander von Humboldt the lost hero of science). Como o livro é relativamente grande (600 páginas) e talvez não tão acessível, vou começar fazendo uma resenha bem resumida do livro.
Capa da edição brasileira Capa da edição em inglês
Se você já leu esse livro, pode pular pra parte de crítica.
Alexander von Humboldt, por Andrea Wulf
Seus livros, palestras e demais produções influenciaram o trabalho de importantes cientistas como Charles Darwin, ambientalistas como John Muir (a comentar mais adiante), ilustradores de ciência como Ernst Haeckel, pensadores como Henry David Thoreau, entre muitos outros.
Com seu nome gigante (Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander von Humboldt), Humboldt nasceu em Berlim (na época, Prússia) em 1769. Parte de uma família bem rica, que era próxima da monarquia prussiana e de muita gente influente como Goethe, Humboldt tinha interesse pelo mundo natural e vontade de conhecer o resto do mundo. Deu um jeito de fugir da vidinha de playboy na Europa para se embrenhar na mata em outros “mundos”.
Sua visita à América do Sul teve Amazônia, entrando pelo rio Orinoco na Venezuela, escalada na montanha Chimborazo, registros e amostras diversas de flora e fauna que renderam vários livros como os 30 volumes do “Narrativa Pessoal” (Personal Narrative of Travels to the Equinoctial Regions of the New Continent during the years 1799–1804).
Humboldt não era só interessado na Natureza, mas observava as relações que os humanos tinham com ela e algumas vezes entre si. Ele registrou suas percepções de como o desmatamento e uso intensivo dos solos levava a sua degradação. Também apontava como a escravidão e o colonialismo era absurdos. Ele foi o primeiro a associar o colonialismo com a destruição ambiental. Tanto que Simón Bolívar, quando estava na Europa, conheceu Humboldt e, como a autora indica, suas conversas foram importantes para que o futuro revolucionário entendesse como a exploração da América Latina era problemática e deveria ser encerrada.
Durante sua expedição ao Chimborazo, Humboldt fez o que chamava de “Naturgemälde” (pintura da Natureza). Na ilustração da paisagem, ele indicava quais espécies de flora estavam presentes em cada lugar, temperatura, pressão, umidade, etc… o que ajudava a compreender as inter-relações dos diferentes componentes da Natureza.

Teve passagens também em Cuba, México, Andes e Estados Unidos. Por ter gastado boa parte de sua herança e renda (vinda dos livros vendidos) para realizar suas expedições, Humboldt quase sempre estava com pouca grana. Acabou fazendo parte da corte prussiana e assim recebendo uma pensão. Ele não curtia muito a vida na corte, mas tinha que comparecer e deslumbrar o rei, convidados e cortesãos com seus conhecimentos como parte de suas obrigações.
Durante seu período em Berlim, já que ele adorava falar sem parar, Humbold fez uma série de palestras abertas ao público, na intenção de popularizar o conhecimento. As audiências chegavam a ter metade dela formada por mulheres. Ele apresentava sobre os diversos tópicos que estudava: o que havia nos mares, estudos astronômicos, montanhas, flora, geologia, fauna, poesia, meteorologia, etc… Carismático, ele fazia que as plateias estivessem sempre cheias.
Quando tinha 65 anos, Humboldt resolveu começar uma coleção de publicações que ele mesmo via como a obra prima de sua vida. “Cosmos” pretendia trazer descrições físicas do mundo e fora inspirada na série de palestras que ele fazia. Enquanto começava a se delinear limites entre as diferentes áreas da ciência, Humboldt queria mostrar as interconexões entre os diversos campos do saber.
A empreitada de Cosmos tomou todo o resto de sua vida. O quinto e último volume da coleção, foi despachado para o editor menos de um mês antes de sua morte, em 6 de maio de 1859, com seus 89 anos.
Importância de Humboldt
Humboldt veio ao mundo após a Revolução Científica (considero aqui final do século 17). Era uma época em que as inovações tecnológicas e a economia industrial visavam controlar a Natureza para o benefício da humanidade (pelo menos de uma parte dela que tinha fácil acesso a bens e poder). As ideias derivadas do cartesianismo tornaram frequentes as comparações da Natureza e animais com máquinas e engrenagens.
O trabalho de Humboldt resgatou uma visão da Natureza que estava “fora de moda”, em que apresentava como um organismo vivo e não como uma máquina. Suas descrições poéticas e românticas empolgavam os leitores e inspiraram até Júlio Verne. Sua facilidade em transitar dentre as diferentes áreas do conhecimento mostrou o quanto é importante costurar e mostrar as relações entre diferentes saberes, mesmo numa época em que a especialização dentro da Ciência começava a se tornar a norma.
Sua escrita cativante viria a atrair mais pessoas para trabalhar com ciência e sua vontade de disseminar o conhecimento foi uma das importantes sementes da divulgação científica (como o trabalho da Rachel Carson). Na década de 80, Carl Sagan que viria a gravar um programa de TV também chamado Cosmos, cuja a combinação de contação de histórias (storytelling) e ciência remete muito ao trabalho do prussiano. Sua visão das relações entre a humanidade e a Natureza ainda estão sendo melhor trabalhadas e são urgentes no momento de colapso ambiental que vivemos.
Conhecer a história de Humboldt é importante para conhecer a história das ciências da Terra.
Aversão às mulheres
Uma das coisas me incomodou profundamente é a ausência de mulheres citadas no livro. Entendo que naquela época poucas mulheres conseguiam se destacar na ciência, mas elas não era inexistentes. Além da menção à mãe de Humboldt, aparecem alguns registros feitos pela cunhada dele, como esse aqui:
“nada que não venha de homens jamais terá uma grande influência sobre Alexander”
Caroline von Humboldt 1
Apesar de no livro de Wulf não falar diretamente, ela deixou claro numa entrevista que tende a acreditar que Humboldt era homossexual 2. Após a morte de Humboldt suas cartas pessoais foram queimadas, dificultando que isso seja confirmado. Ele nunca chegou a se casar.
Pouco importa se ele se relacionava com homens, mulheres, não-bináries ou se era assexual, mas sendo eu mulher, sabendo da importância das pesquisadoras e pensadoras para o estudo da natureza e sua proteção, esse ponto me chamou a atenção e me incomodou muito.
Na fase mais tardia de sua vida, Humboldt tinha seus protegidos e eles acabavam ganhando certa vantagem em relação a outros concorrentes para vagas e colocações em universidades. Será que o viés de Humboldt não contribuiu para encurtar a carreira ou dificultar o trabalho de cientistas mulheres?
Natureza Inventada
Para colocar Humboldt como aquele que inventa a Natureza (ou seja, aquele que define o conceito de que ela é global, dinâmica e suas partes dependem de relações entre si), a autora teve que ignorar boa parte do conhecimento acumulado antes de Humboldt para poder afirmar isso.
Pré-socráticos, Aristóteles, Ptolomeu entre outros já tinham a visão da Terra interconectada. O entendimento das conexões globais da natureza já eram compreendidos pelos portugueses e espanhóis que andavam pelo mundo invadindo terras. A distribuição biogeográfica já tinha sido proposta pelo jesuíta José de Acosta, espanhol enviado como missionário ao Peru 3.
Além disso, a tão exaltada ilustração do Chimborazo por Humboldt tem uma aura controversa. Francisco Jose de Caldas trabalhou com a equipe de Humboldt por alguns meses e já estava desenvolvendo ilustrações com a indicação da distribuição biogeográfica de algumas paisagens, antes do prussiano. Por meio de cartas acusou que as anotações da ilustração de Humboldt não eram empiricamente corretas. Humboldt levou 23 anos para reconhecer a importância do trabalho de Caldas 4.
Anticolonialismo e Abolicionismo pra inglês ver
O pesquisador Cañizares-Esguerra, destaca que no livro de Wulf os períodos de Humboldt na América Latina são resumidos em poucas palavras 2, apesar dele ter passado 5 anos. A autora também coloca a América Latina em contraposição com os Estados Unidos, o primeiro como a Natureza selvagem e o segundo como berço da civilização.
Apesar de no livro Wulf apontar que Humboldt era completamente contrário à escravidão parece que ele não se importou de sua viagem à Cuba ser financiada por traficantes de escravizados, nem de comprar um nativo para fazer suas medições 2 .
Humboldt deu de bandeja informações aos norte-americanos que contribuíram que eles reivindicassem territórios que hoje são o estado de Louisiana e que antes eram do México. Mesmo que ele tenha jurado à Coroa Espanhola sigilo sobre as informações de suas expedições. Thomas Jefferson, presidente dos EUA naquele momento, era a favor do uso de trabalho escravo. Será que Humbold não conseguia ver que a postura dos EUA tinha um quê de colonialismo? Será que mesmo se opondo à escravidão ele achava que os EUA seriam melhores escravagistas?
O problema com heróis…
Como Cañizares-Esguerra fala, o desejo por um herói da Natureza nesse momento de catástrofes ambientais que acontecem e são previstas, fez do livro “A invenção da Natureza” um grande best-seller. Apesar da tradução brasileira não ter usado o termo “herói” no subtítulo, ao longo do livro tive a impressão que Humboldt foi um grande herói para a escritora. A idealização também torna mais difícil a elaboração e aceitação de críticas.
O trabalho de Kutzinski investiga como que ao longo dos tempos a foram se criando diferentes personas para Humboldt 5. Cada biógrafo focou e destacou algumas nuances com mais ênfase. Cada escritor criou uma narrativa para a visão que lhe parecia melhor sobre essa figura.
Acredito que a comunicação da ciência ainda tem uma vontade forte de transformar cientistas excepcionais em algo sobre-humano. Eu acho isso preocupante pois a ciência é uma construção coletiva, um aprendizado sobre outros. Atualmente é quase impossível projetos importantes da ciência serem feitos em pequenas equipes. Esse viés deturpa o aspecto colaborativo necessário para o desenvolvimento da ciência.
Tenho a sensação que sentimos necessidade de histórias assim para nos conectar com elas ou para que elas tenham apelo comercial. A Jornada do Herói, descrita por Joseph Campbell, parece ser um grande vício nosso, algo que comecei pontuei bem ligeiramente na resenha sobre Professor Polvo.
Referências
1 WULF, Andrea. A Invenção da Natureza. A vida e as descobertas de Alexander von Humboldt. São Paulo: Crítica, 2019
2 Winkler, Thomas. A testimony to a restless spirit. 2 Apr 2019. Disponível em: https://humboldt-heute.de/en/humboldtblog/wulf-interview . Acesso em 11 maio 2021.
3 CANIZARES-ESGUERRA, Jorge Canizares. Screwing Humboldt and his hagiographers. Medium, 27 Sep. 2019. Disponível em: https://medium.com/@jorgecanizaresesguerra/screwing-in-two-positions-82c2cc5b09db. Acesso em11 Mai 2021.
4 SILVA, Marcio Antônio Both da. A invenção de Humboldt: Desvendando o eurocentrismo e seus significados. Varia hist., Belo Horizonte , v. 36, n. 72, p. 891-898, Dez 2020 . Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752020000300891&lng=en&nrm=iso.Acesso em 11 Mai 2021. Epub 09 Out 09 2020. https://doi.org/10.1590/0104-87752020000300011.
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